quarta-feira, 15 de julho de 2015

O drama do Narquita

by JCosta

Pois o Narquita andava meio cabisbaixo, mas não era para menos, afinal, o gaudério já vinha a mais de mês com uma dor danada na perna direita. Com um pé na bota e outro no chinelo, ele andava de lado firmando o peso do corpo no pé esquerdo para conseguir caminhar um pouco menos desconfortável.  Ao visitar o tio que morava lá pelas bandas do Jaguarão Chico, quando perguntado sobre o modo de caminhar rengueando foi logo contando da dor na perna: “pois olha, não quero te mentir, mas já faz bem uns trinta dias que essa dorzinha xarope me pegou, não sei se foi da última esquila ou de algum tranco que levei ao lidar no aparte de gado na fazenda do Zé Bagual, mas confesso que não tô aguentando”. O tio, na mais pura vontade de ajudar foi logo sugerindo uma das receitas mais indicada na região para esses casos: uma boa benzedura com a comadre Querimbina, prática que até então havia dado mais certo do que errado, mesmo que nos casos de melhora, esta, acontecesse só depois de uma semana ou mais. Acossado da pua, foi logo aceitando a sugestão. Após ter tomado uma chaleira de mate, levantou-se levando a mão na cintura, pediu a bênção para tio e encaminhou-se em direção à carreteira que levava ao rancho da dona Querimbina. Lá chegando, deu bom dia, e sem meias palavras, foi contando da dor na perna. Ela convidou o Narquita a entrar: “passe pra dentro e sente que nóis vai dar uma olhada nessa perna”. Não teve dúvida ela foi até a horta, onde havia somente um pé de limão bravo e outro de arruda, deu de mão num galho do arbusto e veio para dentro do rancho. A velha pronunciou palavras num idioma que talvez fosse primo do nosso conhecido português, movimentou o galho de arruda sobre a perna esquerda do gaudério que já foi dizendo: “dona Querimbina, não é essa, é a perna direita”.

De volta para cidade, ainda mancando e com uma dor danada, abriu a porta da casa e, por conta e com um pouco de culpa, procurou um analgésico que há mais de ano estava guardado num porongo na cristaleira da sala.

Alguns dias depois, ainda com um pé na bota e outro no chinelo com propósito de relaxar a perna “ofendida”, tomou a mais inédita decisão: consultar um médico, coisa que só havia feito trinta anos atrás, quando foi levado pela mãe no único médico da cidade para tirar um “bichoberne” da cabeça. Para alívio da sua angústia e  um pouco de sorte lembrou-se de um primo de terceiro grau que era médico e atendia na cidade vizinha. No dia seguinte levantou de madrugada, tomou algumas cuias de mate, colocou o pala no braço e dirigiu-se para a rodoviária. Ansioso, entrou no ônibus, sentou-se e já foi esticando a perna no corredor.

No consultório do parente, mais nervoso que pinto em cancha de bocha, pensava mais no diagnóstico do médico do que iria dizer, afinal, era a primeira vez que consultaria com o primo. O médico abriu a porta e vendo o parente o cumprimentou no bom estilo da parentada: “Ué, buenas, o que te traz pra estas bandas?”. O dito cujo explicou todo o acontecido e esperou a rotina de perguntas:

- Mas há quanto tempo tu vens sentido essa dor?

- Olha tchê, já faz mais de mês que essa dor me incomoda.

- Fumas?

- Sim, faz uns cinquenta anos.

- Muito bem, arremanga a bombacha para darmos uma olhada nessa perna.

- É a direita.

- Olha tchê, pelo que estou vendo a coisa é séria, pois há sinal evidente de início trombose obstrutiva.

- Como assim, trombose?

- Sim, tu desenvolveste um processo de obstrução da circulação do sangue que, de repente, pode levar à necrose do tecido.

- Como assim, necrose?

- Olha primo, como parente e amigo posso te dizer o seguinte: tu tens duas opções: ou tu deixas de fumar ou daqui a trinta dias tu vens aqui e eu corto essa perna.

O homem ficou branco, parou de falar por uns bons vinte segundos, tempo suficiente para refletir e, retomando o fôlego, falou:

- Bueno, agora fiquei sem muita escolha: então, acho que o melhor é deixar de fumar.

- Muito bem, é assim que se fala; fico feliz com a tua decisão.

O Narquita despediu-se do primo e retornou para casa. Ainda no ônibus, pegou o pacote de fumo e o livro de papel abriu a janela e jogou fora.

Deixou de fumar. A dor era coisa do passado, mas a vontade de fumar ainda era muito presente. Noventa e poucos dias depois, já calçando as duas botas entrou no boteco, e gritou: “me dá um pacote de fumo e um livro de papel”.

E a coisa é bem assim: cada um tem a liberdade de escolher o seu caminho.

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